Discoteca Básica; 'Dirty Mind', Prince (1980)



Discoteca Básica; 'Dirty Mind', Prince (1980)


Ele entra na década com um salto, um bote. O que diferencia este seu terceiro LP, dos dois anteriores? Está na capa, está no título: a definição de uma identidade - ou imagem ? - e, como friza seu biógrafo Dave Hill, uma atitude. Um ex-menino prodígio enxuga todos os possíveis excessos cabíveis em um multi-instrumentista que é arranjador de sete fôlegos e infinitas filigranas, vocalista de todas as máscaras, gritos e sussurros e seu próprio produtor. Se há algo que incomoda em "Dirty Mind" - e até compromete em "Purple Rain" - é a impressão de se ouvir alguém que pode fazer, em música, tudo o que quiser sem o menor esforço para ser o mais contemporâneo, o mais simples e direto - mais pop, enfim - possível.

Tudo isso é verdade, mas se limita ao primeiro lado do disco. A abertura com a faixa -título não deixa dúvidas. Tudo que era difuso no Prince anterior ganha contornos nítidos e, pela primeira vez, a pulsação de baixo, caixa e bumbo vem descarnada e destacada como esqueleto, um chassis aerodinâmico: o groove a levada, em sua essência. Um susto maior: a óbvia influência da new wave então vigente ritmo robótico e pop plástico. Uma ousadia perigosa: talvez o primeiro negro a escancarar influências brancas. (A faixa seguinte, " When You Were Mine ", vai ainda mais fundo: parece puro B- 52's !).

E, voltando à abertura o que quer esta "mente suja"? Sexo e confronto. Sexo no banco traseiro do carro do papai (dela) . Sexo e saúde, perversão sem neurose, liberdade, igualdade... É na terceira faixa, "Do It All Night", que a farra vai começar, sai o rockinho wavy e assume o funkaço que se solta, estica, liquefaz; à tona as fontes básicas, a comunhão desvairada na trilha aberta por Sly Stone, nos 60 e George Clinton, nos 70. Prince Rogers Nelson fixa no terceiro ponto uma linha reta e, a partir daí vai expandi-lo coma mania perfeccionista de quem constrói um universo.

A base está toda no segundo lado - é quase um disco diferente, como se tivesse passado o lado um a dar munição certeira para programadores de FM e, cumprida a missão soltasse todas as amarras - menos a da dança compulsiva.

São quatro faixas que se fundem num crescendo acumulativo e de tamanha luxúria que seria capaz de levar um convento à orgia, porque ela é a Nova Utopia. Entre a cruz e o clitóris, Prince não faz nenhuma opção excludente e ainda enxerga um casamento livre das angústias que esse conflito - na cultura negra americana, presente desde sempre na divisão entre blues e gospel - trazia a um Marvin Gaye, por exemplo.

"Uptown" remete a um lugar, não identificado, qualquer centro de cidade onde haja gente, festa, dança - nos créditos da capa, " gravado em alguma parte de Uptown" - uma folia na qual não haja a menor distinção entre sexo e cor. Ela emenda com as duas canções do miolo - " Head " e " Sister" -, que estigmatizam Prince até hoje.

Quando você ler o clichê jornalístico "canções que falam de incesto a sexo oral" , saiba que são essas duas. Em inglês coloquial, a expressão "give head" ("dar a cabeça"), abrange todas as modalidades possíveis de sexo oral. A letra apresenta uma garota - interpretada por Lisa Coleman - que quer casar virgem. Daí, a apologia feita por Prince do sexo oral como capaz de satisfazer ambos, com maior prazer (no fim, ele ainda pede desculpas por ejacular no véu do vestido de noiva). Já "Sister" lista as vantagens de se ter uma irmã mais velha, generosa o bastante pra ensinar tudo que um garoto precisa saber. Desse duplo retiro ente quatro paredes vem o transporte para o transe coletivo iniciando em "Uptown": "Dirty Mind" encerra com "Partyup", cantos e contracantos de uma nova explosão impossível de ignorar. 

José Augusto Lemos (Revista Bizz, edição 49, Julho de 1989)


Tracklist;

01. 'Dirty Mind'
02. 'When You Were Mine'
03. 'Do It All Night'
04. 'Gotta a Broken Heart Again'
05. 'Uptown'
06. 'Head'
07. 'Sister'
08. 'Partyup'


 
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